Este artigo não vai repetir o
óbvio. Não vamos falar de super flexibilização e retrocesso ambiental como se
fossem verdades absolutas. Queremos ir além das posts e thumbnails e oferecer
uma análise mais aprofundada, com nuances e complexidades que a discussão
merece.
Unificar para Destravar: a Boa
Intenção
A centralização do licenciamento
ambiental em uma legislação única é uma demanda antiga, que atende não só aos
interesses do capital financeiro, ávido por destravar investimentos, mas também
aos anseios dos próprios órgãos licenciadores. Desde a concepção do projeto de
lei (lá nos idos de 2004, com o então deputado Luciano Zica), a ideia era
diminuir a discricionariedade e a burocracia, tornando o processo mais célere e
transparente.
O Diabo mora nos detalhes (e na falta deles)
Contudo, o texto atual do PL,
somado às emendas propostas pelo Senado, é insuficiente em muitos aspectos. A
falta de especificidade e a superficialidade em temas cruciais podem levar
justamente ao oposto do que se pretendia: aumentar a discricionariedade dos
órgãos ambientais e gerar insegurança jurídica para todos os envolvidos.
Os Três Cavaleiros do apocalipse do Projeto de Lei
Na nossa visão, três problemas
principais, interconectados como os cavaleiros do Apocalipse, ameaçam o sucesso
do PL:
- Sobrecarga Sem Remédio: O PL estabelece prazos para o cumprimento das etapas do licenciamento, o que é positivo. Mas não prevê investimentos na modernização e no aumento da capacidade da máquina analítica dos órgãos ambientais.
- Prazos Que Aprisionam: Os prazos para o
cumprimento dos procedimentos de análise e divulgação por parte dos órgãos
licenciadores, para a manifestação de outros órgãos governamentais e da
sociedade civil, são cruciais. Mas o que acontece se esses prazos não
forem cumpridos? O PL permite que o processo siga para a próxima fase ou
que seja estabelecida a "competência supletiva" (quando outro
órgão assume a responsabilidade pelo licenciamento). Essa solução, embora
possa parecer eficiente, pode comprometer o crivo técnico e jurídico da
análise do processo, bem como a participação social, pilares do
licenciamento.
- Território à Deriva: O PL ignora a importância dos instrumentos de gestão territorial, como o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), planos de bacia hidrográfica, áreas prioritárias, planos de manejo... etc. É como liberar a construção de casas em uma rua sem pensar no distanciamento entre as residências, na iluminação pública, na rede de esgoto e pluvial compartilhada... receita para o caos. A falta de planejamento territorial pode levar à implantação de empreendimentos em áreas inadequadas e impacto cumulativo não mitigado, gerando conflitos ambientais e sociais.
A Pirâmide de Kelsen Abalada:
A sanção do PL pode gerar um terremoto na hierarquia dos instrumentos jurídicos ambientais brasileiros. Como lei ordinária federal, o PL se sobrepõe às normas infraconstitucionais estaduais e municipais, como portarias, Deliberações Normativas (DNs), Instruções Normativas (INs), resoluções, portarias... Portanto as normas infraconstitucionais deverão ser revistas, adequando-se à nova lei ordinária.
Para ilustrar, vamos analisar o caso da Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 (MG), que regulamenta o licenciamento ambiental de atividades de silvicultura em Minas Gerais. Se o PL ampliar o rol de atividades dispensadas de licenciamento ou permitir o licenciamento por adesão e compromisso, a Resolução Conjunta terá que ser alterada para se adequar às novas regras. Isso pode levar à flexibilização das exigências ambientais para a silvicultura, com consequências negativas para o meio ambiente.
- Dispensa de Licenciamento: Se o PL
2159/21 ampliar o rol de atividades dispensadas de licenciamento
ambiental, algumas atividades de silvicultura que hoje são licenciadas
pela Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 podem ser desobrigadas de
licenciamento. Nesse caso, a Resolução Conjunta deverá ser alterada para
se adequar ao PL, excluindo essas atividades do rol de atividades
licenciáveis.
- Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC): Se
o PL 2159/21 permitir o licenciamento de atividades de silvicultura por
meio da LAC, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser
alterada para incluir essa modalidade de licenciamento. Além disso, a
Resolução Conjunta deverá definir os critérios e procedimentos para a
adesão à LAC, em consonância com o que for estabelecido no PL.
- Prazos para Análise: Se o PL 2159/21
estabelecer prazos máximos para a análise dos processos de licenciamento,
a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para se
adequar a esses prazos. Isso pode exigir a reestruturação dos processos de
trabalho dos órgãos ambientais e a adoção de novas tecnologias para
agilizar a análise dos processos.
- Condicionantes Ambientais: Se o PL
2159/21 alterar as condicionantes ambientais exigidas para o licenciamento
da silvicultura, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser
alterada para se adequar a essas novas condicionantes. Isso pode reduzir a
proteção do meio ambiente e aumentar o risco de impactos negativos.
- Competência Supletiva: Se o PL 2159/21
permitir a transferência da competência para o licenciamento ambiental
para outro ente federativo em caso de descumprimento dos prazos, a
Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para prever
essa possibilidade. Além disso, a Resolução Conjunta deverá definir os
critérios e procedimentos para a transferência da competência, em
consonância com o que for estabelecido no PL.
Inconstitucionalidades à
Vista:
Além disso, o PL pode ser
questionado judicialmente por apresentar potenciais inconstitucionalidades.
Alguns exemplos, que não demandam grande esforço interpretativo, são:
- Falta de Critérios para a LAE: A falta
de critérios objetivos para definir o que é "empreendimento
estratégico" para fins de Licença Ambiental Especial (LAE) pode abrir
espaço para decisões arbitrárias e violar os princípios da isonomia, da
impessoalidade e da motivação dos atos administrativos (Art. 37 da CF).
- Renovação Automática Sem Fiscalização: A
permissão para a renovação automática de licenças para atividades de baixo
e médio impacto, mediante autodeclaração, pode comprometer a proteção do
meio ambiente se não houver fiscalização e controle para garantir a
veracidade das informações prestadas e o cumprimento das condicionantes
ambientais (Art. 225 da CF).
- Prazos e a Autonomia Federativa: A
possibilidade de transferência da competência para o licenciamento
ambiental para outro ente federativo em caso de descumprimento dos prazos
pode violar o princípio da autonomia dos entes federativos (Art. 18 da
CF).
- Dispensa de Licenciamento e o Estudo Prévio: A
dispensa generalizada de licenciamento para atividades com potencial de
impacto ambiental pode violar a exigência constitucional de estudo prévio
de impacto ambiental (Art. 225, § 1º, IV da CF).
- Atividades Agropecuárias e a Proteção Ambiental: A
dispensa de licenciamento para diversas atividades agropecuárias pode
comprometer a proteção do meio ambiente se não forem considerados os
impactos ambientais específicos de cada atividade (Art. 225 da CF).
- Prazos e Direitos de Povos Tradicionais: A
fixação de prazos para manifestação de órgãos e entidades, sem a devida
consideração das especificidades e dos direitos de povos indígenas e
comunidades tradicionais, pode violar os Art. 231 da CF e Art. 68 do ADCT.
Apesar dos riscos, o PL 2159/21
pode representar uma oportunidade para impulsionar a economia brasileira e
gerar empregos. Em um cenário geopolítico conturbado, com conflitos globais e a
necessidade de países "friend shore elegible", o Brasil, com suas
boas relações diplomáticas e seu potencial para a produção sustentável, pode
ser um trunfo para atrair investimentos que buscam a produção e infraestrutura.
O mundo precisa de novos polos de produção e o Brasil pode se posicionar como
um parceiro confiável e ambientalmente responsável, atraindo capital e
tecnologia para um desenvolvimento mais sustentável.
O que fazer para transformar o limão em limonada?
Para que o PL seja uma alavanca
para o sucesso ambiental e econômico, é preciso:
- Investir na Máquina Analítica: Modernizar
os órgãos licenciadores, investindo na capacitação e na qualificação do
corpo técnico. O Projeto de Lei em voga estabelece a implantação e
operação do SINIMA, um sistema eletrônico que visa centralizar e
dar maior transparência ao licenciamento — um ponto muito positivo.
Contudo, o projeto não esclarece como essa pequena “grande” parte será
efetivamente desenvolvida e implantada, tampouco de onde virão os recursos
para isso. É compreensível que a execução detalhada não conste no texto
legal, mas também não se ouve qualquer menção a isso nos corredores de
Brasília. Portanto, aquilo que poderia ser o farol de um licenciamento
eficiente corre o risco de se tornar mais um elefante na sala —
grande, visível, mas convenientemente ignorado.
- Fiscalização Sem Trégua: Aumentar o
rigor na fiscalização, no julgamento e nas sanções administrativas e
criminalização de executivos (claro, quando for o caso).
- Planejar o Território: Incorporar os
instrumentos de gestão territorial ao processo de licenciamento,
garantindo que o uso do solo seja feito de forma inteligente e
sustentável.
- Esclarecer as Regras do Jogo: Revisar o
texto do PL para trazer mais clareza e especificidade em temas polêmicos,
como a qualificação do grau poluidor, os empreendimentos estratégicos, a
LAE, a renovação automática, o LOC e o estabelecimento de competência
supletiva.
O futuro está em nossas mãos
Levando em consideração todos os
“contudo” e “veja bem” aqui apresentados, podemos vislumbrar alguns cenários:
- Cenário Positivo: Crescimento econômico
com sustentabilidade, atração de investimentos verdes, geração de empregos
e valorização dos produtos e serviços sustentáveis.
- Cenário Negativo: Aumento do
desmatamento, da grilagem de terras e da degradação dos recursos naturais,
com consequências negativas para a economia e para a sociedade.
- Cenário Realista: Crescimento econômico
lento e desigual, com a concentração de renda e a degradação ambiental em
algumas áreas.
- Cenário Ousado: Brasil como potência
ambiental, com uma economia diversificada e resiliente, baseada na
inovação e sustentabilidade.
- Cenário Conservador: Estagnação
econômica, desmonte dos órgãos ambientais e desregulamentação do
licenciamento, com aumento do desmatamento e motins sociais.
A sociedade brasileira precisa estar atenta e vigilante, para garantir que o licenciamento ambiental seja um instrumento mais eficaz e eficiente para a promoção de um futuro mais sustentável, bem como ser um gatilho para a tração de investimentos. O PL 2159/21 é um divisor de águas para o licenciamento ambiental no Brasil. A forma como a lei será implementada definirá se o país trilhará um caminho de desenvolvimento sustentável ou se comprometerá seu patrimônio natural em detrimento de um crescimento efêmero. Ainda são necessários alguns esforços para que os cenários Positivo ou Ousado se materializem e, para tanto, é necessário que políticos e a sociedade civil estejam imbuídos nas ações necessárias para um futuro próspero e de amadurecimento do desempenho em sustentabilidade no Brasil.
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