Texto analisa o Projeto de Lei nº 2159/2021 (PL do Licenciamento Ambiental) no Brasil



A Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada desta quinta-feira (17), o projeto de lei que estabelece regras gerais de licenciamento ambiental. A proposta também cria novos tipos de licença, como para empreendimentos estratégicos e de adesão por compromisso com procedimentos simplificados e prazos menores para análise. O texto será enviado à sanção presidencial.

A história de Pandora, aquela da caixa (ou seria jarra?) que, por curiosidade, liberou todos os males do mundo, é um mito amplamente conhecido. Reduzida, muitas vezes, à ideia de que "a curiosidade é perigosa", a narrativa original é bem mais complexa: Pandora foi criada pelos deuses como punição à humanidade após o roubo do fogo por Prometeu, e recebeu um jarro (não uma caixa) com conteúdo misterioso. Ao abri-lo, liberou o sofrimento, mas algo permaneceu no fundo — a esperança. Essa ambivalência nos lembra que o problema não era a curiosidade de Pandora, mas sim o contexto de manipulação em que ela foi colocada. Da mesma forma, a compreensão superficial sobre o Projeto de Lei nº 2159/2021, o PL do Licenciamento Ambiental, pode nos levar a conclusões precipitadas e ficarmos repetindo por aí aquilo que nos é “empurrado” pelos veículos de comunicação rápida.

Este artigo não vai repetir o óbvio. Não vamos falar de super flexibilização e retrocesso ambiental como se fossem verdades absolutas. Queremos ir além das posts e thumbnails e oferecer uma análise mais aprofundada, com nuances e complexidades que a discussão merece.

Unificar para Destravar: a Boa Intenção

A centralização do licenciamento ambiental em uma legislação única é uma demanda antiga, que atende não só aos interesses do capital financeiro, ávido por destravar investimentos, mas também aos anseios dos próprios órgãos licenciadores. Desde a concepção do projeto de lei (lá nos idos de 2004, com o então deputado Luciano Zica), a ideia era diminuir a discricionariedade e a burocracia, tornando o processo mais célere e transparente.

O Diabo mora nos detalhes (e na falta deles)

Contudo, o texto atual do PL, somado às emendas propostas pelo Senado, é insuficiente em muitos aspectos. A falta de especificidade e a superficialidade em temas cruciais podem levar justamente ao oposto do que se pretendia: aumentar a discricionariedade dos órgãos ambientais e gerar insegurança jurídica para todos os envolvidos.


Os Três Cavaleiros do apocalipse do Projeto de Lei


Na nossa visão, três problemas principais, interconectados como os cavaleiros do Apocalipse, ameaçam o sucesso do PL:

  1. Sobrecarga Sem Remédio: O PL estabelece prazos para o cumprimento das etapas do licenciamento, o que é positivo. Mas não prevê investimentos na modernização e no aumento da capacidade da máquina analítica dos órgãos ambientais.
  2. Prazos Que Aprisionam: Os prazos para o cumprimento dos procedimentos de análise e divulgação por parte dos órgãos licenciadores, para a manifestação de outros órgãos governamentais e da sociedade civil, são cruciais. Mas o que acontece se esses prazos não forem cumpridos? O PL permite que o processo siga para a próxima fase ou que seja estabelecida a "competência supletiva" (quando outro órgão assume a responsabilidade pelo licenciamento). Essa solução, embora possa parecer eficiente, pode comprometer o crivo técnico e jurídico da análise do processo, bem como a participação social, pilares do licenciamento.
  3. Território à Deriva: O PL ignora a importância dos instrumentos de gestão territorial, como o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), planos de bacia hidrográfica, áreas prioritárias, planos de manejo... etc. É como liberar a construção de casas em uma rua sem pensar no distanciamento entre as residências, na iluminação pública, na rede de esgoto e pluvial compartilhada... receita para o caos. A falta de planejamento territorial pode levar à implantação de empreendimentos em áreas inadequadas e impacto cumulativo não mitigado, gerando conflitos ambientais e sociais.

A Pirâmide de Kelsen Abalada:

A sanção do PL pode gerar um terremoto na hierarquia dos instrumentos jurídicos ambientais brasileiros. Como lei ordinária federal, o PL se sobrepõe às normas infraconstitucionais estaduais e municipais, como portarias, Deliberações Normativas (DNs), Instruções Normativas (INs), resoluções, portarias... Portanto as normas infraconstitucionais deverão ser revistas, adequando-se à nova lei ordinária.

Para ilustrar, vamos analisar o caso da Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 (MG), que regulamenta o licenciamento ambiental de atividades de silvicultura em Minas Gerais. Se o PL ampliar o rol de atividades dispensadas de licenciamento ou permitir o licenciamento por adesão e compromisso, a Resolução Conjunta terá que ser alterada para se adequar às novas regras. Isso pode levar à flexibilização das exigências ambientais para a silvicultura, com consequências negativas para o meio ambiente.


Desdobramentos da Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014:

  1. Dispensa de Licenciamento: Se o PL 2159/21 ampliar o rol de atividades dispensadas de licenciamento ambiental, algumas atividades de silvicultura que hoje são licenciadas pela Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 podem ser desobrigadas de licenciamento. Nesse caso, a Resolução Conjunta deverá ser alterada para se adequar ao PL, excluindo essas atividades do rol de atividades licenciáveis.
  2. Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC): Se o PL 2159/21 permitir o licenciamento de atividades de silvicultura por meio da LAC, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para incluir essa modalidade de licenciamento. Além disso, a Resolução Conjunta deverá definir os critérios e procedimentos para a adesão à LAC, em consonância com o que for estabelecido no PL.
  3. Prazos para Análise: Se o PL 2159/21 estabelecer prazos máximos para a análise dos processos de licenciamento, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para se adequar a esses prazos. Isso pode exigir a reestruturação dos processos de trabalho dos órgãos ambientais e a adoção de novas tecnologias para agilizar a análise dos processos.
  4. Condicionantes Ambientais: Se o PL 2159/21 alterar as condicionantes ambientais exigidas para o licenciamento da silvicultura, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para se adequar a essas novas condicionantes. Isso pode reduzir a proteção do meio ambiente e aumentar o risco de impactos negativos.
  5. Competência Supletiva: Se o PL 2159/21 permitir a transferência da competência para o licenciamento ambiental para outro ente federativo em caso de descumprimento dos prazos, a Resolução Conjunta IEF/SEMAD nº 2.248/2014 deverá ser alterada para prever essa possibilidade. Além disso, a Resolução Conjunta deverá definir os critérios e procedimentos para a transferência da competência, em consonância com o que for estabelecido no PL.

Inconstitucionalidades à Vista:

Além disso, o PL pode ser questionado judicialmente por apresentar potenciais inconstitucionalidades. Alguns exemplos, que não demandam grande esforço interpretativo, são:

  1. Falta de Critérios para a LAE: A falta de critérios objetivos para definir o que é "empreendimento estratégico" para fins de Licença Ambiental Especial (LAE) pode abrir espaço para decisões arbitrárias e violar os princípios da isonomia, da impessoalidade e da motivação dos atos administrativos (Art. 37 da CF).
  2. Renovação Automática Sem Fiscalização: A permissão para a renovação automática de licenças para atividades de baixo e médio impacto, mediante autodeclaração, pode comprometer a proteção do meio ambiente se não houver fiscalização e controle para garantir a veracidade das informações prestadas e o cumprimento das condicionantes ambientais (Art. 225 da CF).
  3. Prazos e a Autonomia Federativa: A possibilidade de transferência da competência para o licenciamento ambiental para outro ente federativo em caso de descumprimento dos prazos pode violar o princípio da autonomia dos entes federativos (Art. 18 da CF).
  4. Dispensa de Licenciamento e o Estudo Prévio: A dispensa generalizada de licenciamento para atividades com potencial de impacto ambiental pode violar a exigência constitucional de estudo prévio de impacto ambiental (Art. 225, § 1º, IV da CF).
  5. Atividades Agropecuárias e a Proteção Ambiental: A dispensa de licenciamento para diversas atividades agropecuárias pode comprometer a proteção do meio ambiente se não forem considerados os impactos ambientais específicos de cada atividade (Art. 225 da CF).
  6. Prazos e Direitos de Povos Tradicionais: A fixação de prazos para manifestação de órgãos e entidades, sem a devida consideração das especificidades e dos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, pode violar os Art. 231 da CF e Art. 68 do ADCT.

Um Raio de Esperança (Se soubermos aproveitar)

Apesar dos riscos, o PL 2159/21 pode representar uma oportunidade para impulsionar a economia brasileira e gerar empregos. Em um cenário geopolítico conturbado, com conflitos globais e a necessidade de países "friend shore elegible", o Brasil, com suas boas relações diplomáticas e seu potencial para a produção sustentável, pode ser um trunfo para atrair investimentos que buscam a produção e infraestrutura. O mundo precisa de novos polos de produção e o Brasil pode se posicionar como um parceiro confiável e ambientalmente responsável, atraindo capital e tecnologia para um desenvolvimento mais sustentável.

O que fazer para transformar o limão em limonada?

Para que o PL seja uma alavanca para o sucesso ambiental e econômico, é preciso:

  1. Investir na Máquina Analítica: Modernizar os órgãos licenciadores, investindo na capacitação e na qualificação do corpo técnico. O Projeto de Lei em voga estabelece a implantação e operação do SINIMA, um sistema eletrônico que visa centralizar e dar maior transparência ao licenciamento — um ponto muito positivo. Contudo, o projeto não esclarece como essa pequena “grande” parte será efetivamente desenvolvida e implantada, tampouco de onde virão os recursos para isso. É compreensível que a execução detalhada não conste no texto legal, mas também não se ouve qualquer menção a isso nos corredores de Brasília. Portanto, aquilo que poderia ser o farol de um licenciamento eficiente corre o risco de se tornar mais um elefante na sala — grande, visível, mas convenientemente ignorado.
  2. Fiscalização Sem Trégua: Aumentar o rigor na fiscalização, no julgamento e nas sanções administrativas e criminalização de executivos (claro, quando for o caso).
  3. Planejar o Território: Incorporar os instrumentos de gestão territorial ao processo de licenciamento, garantindo que o uso do solo seja feito de forma inteligente e sustentável.
  4. Esclarecer as Regras do Jogo: Revisar o texto do PL para trazer mais clareza e especificidade em temas polêmicos, como a qualificação do grau poluidor, os empreendimentos estratégicos, a LAE, a renovação automática, o LOC e o estabelecimento de competência supletiva.

O futuro está em nossas mãos

Levando em consideração todos os “contudo” e “veja bem” aqui apresentados, podemos vislumbrar alguns cenários:

  • Cenário Positivo: Crescimento econômico com sustentabilidade, atração de investimentos verdes, geração de empregos e valorização dos produtos e serviços sustentáveis.
  • Cenário Negativo: Aumento do desmatamento, da grilagem de terras e da degradação dos recursos naturais, com consequências negativas para a economia e para a sociedade.
  • Cenário Realista: Crescimento econômico lento e desigual, com a concentração de renda e a degradação ambiental em algumas áreas.
  • Cenário Ousado: Brasil como potência ambiental, com uma economia diversificada e resiliente, baseada na inovação e sustentabilidade.
  • Cenário Conservador: Estagnação econômica, desmonte dos órgãos ambientais e desregulamentação do licenciamento, com aumento do desmatamento e motins sociais.

A sociedade brasileira precisa estar atenta e vigilante, para garantir que o licenciamento ambiental seja um instrumento mais eficaz e eficiente para a promoção de um futuro mais sustentável, bem como ser um gatilho para a tração de investimentos. O PL 2159/21 é um divisor de águas para o licenciamento ambiental no Brasil. A forma como a lei será implementada definirá se o país trilhará um caminho de desenvolvimento sustentável ou se comprometerá seu patrimônio natural em detrimento de um crescimento efêmero. Ainda são necessários alguns esforços para que os cenários Positivo ou Ousado se materializem e, para tanto, é necessário que políticos e a sociedade civil estejam imbuídos nas ações necessárias para um futuro próspero e de amadurecimento do desempenho em sustentabilidade no Brasil.

Por Yuri Simões



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